Durante nossas discussões sobre o movimento kitsch (arte kitsch?! quem ousará responder?!) algumas definições e origens da palavra foram citadas. Uma delas veio do livro A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Deixaremos tatuadas aqui no blog algumas dessas referências, pois podem servir para esclarecimentos e discussões vindouras. A insustentável leveza do ser é um livro que retrata o mundo comunista da antiga Tchecoslováquia, mas sem deixar de exalar um perfume de romance! Portanto, os personagens se confundem com as definições apresentadas pelo autor, entregando-nas já impregnadas de interpretações e julgamentos. Mas, ao invés de torná-lo um 'desvio' de olhar, o livro serve justamente como um meio que nos leva a compreender o kitsch no no seu surgimento, aplicado ao seu contexto originário - ou seja, ver o kitsch através de uma visão bem diferente daquelas que temos. Antes das citações que se referem diretamente ao kitsch, deixemos postado aqui uma partezinha do livro que se refere à beleza.. na disposição do livro ela já se encontra antes da definição de kitsch (e antes de o autor usufruir deste termo em abundância).. quem sabe esta beleza à qual o autor se refere seja uma forma de introduzir o kitsch.. quem sabe? alguém sabe? Milaaaaaaan!
“Franz disse: ‘Na Europa, a beleza sempre foi intencional. Havia sempre um fim estético e um plano de longa duração; foram necessários séculos para edificar segundo esse plano uma catedral gótica ou uma cidade do Renascimento. A beleza de Nova York tem uma origem completamente diversa. É uma beleza não intencional. nasceu sem premeditação por parte do homem, como uma gruta de estalactites. Formas, feias em si mesmas, encontram-se por acaso, sem nenhum plano, em vizinhanças improváveis onde brilham de repente numa poesia mágica’.
Sabina disse: ‘A beleza não é intencional. É isso mesmo, também se poderia dizer: a beleza por engano. Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existirá ainda alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é a último estágio da história da beleza’.” (p. 101)
As próximas citações foram todas retiradas da sexta parte do livro, chamada A grande marcha. Se notarem a evolução das páginas, verão que formam quase que a sequência do livro! Quando encontrarem alguns números que seguem o desenrolar do texto, saibam que é a divisão entre os pequenos capítulos dentro do texto.. boa leitura!
“Esta é uma palavra alemã [kitsch] que apareceu em meados do sentimental século XIX e que em seguida se espalhou por todas as línguas. Mas o uso freqüente do termo apagou seu valor metafísico original: o kitsch, em essência, é a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal como no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.” (p. 244)
“A primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo não tinha um caráter ético, mas estético. O que lhe repugnava não era tanto a feiúra do mundo comunista (os castelos convertidos em estábulos), mas a máscara de beleza com que ele se cobrira, isto é, o kitsch comunista. O modelo desse kitsch era a chamada festa do Primeiro de Maio.” (p. 244)
“Por volta de dez anos mais tarde (ela já morava na América), um senador americano amigo de seus amigos a levou para passear num carro enorme. Quatro garotos se apertavam no banco de trás. O senador parou; as crianças desceram e desataram a correr num gramado imenso em direção a um estádio onde havia um rinque. O senador ficou ao volante olhando com ar sonhador as quatro pequenas silhuetas que corriam; virou-se para Sabina: ‘É isso que eu chamo de felicidade’.
Essas palavras não eram apenas uma expressão de alegria diante das crianças que corriam e da grama que crescia, era também uma manifestação de compreensão em relação a uma mulher que vinha de um país comunista onde, o senador estava convencido, a grama não cresce e as crianças não correm.
Mas, nesse momento, Sabina imaginou o senador num palanque de uma praça de Praga. Em seu rosto, havia exatamente o mesmo sorriso que os estadistas comunistas dirigiam do alto de seu palanque aos cidadãos igualmente sorridentes, que desfilavam a seus pés.
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Como o senador podia saber que as crianças significavam felicidade? enxergaria dentro de suas almas? E se três dessas crianças, assim que saíssem de seu campo visual, se atirassem sobre a quarta e começassem a espancá-la?
O senador tinha apenas um argumento a favor de sua afirmação: a sensibilidade dele. Quando o coração fala, não é conveniente que a razão faça objeções. No reino do kitsch se pratica a ditadura do coração.
É preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Por isso, o kitsch não se interessa pelo insólito; ele apela para as imagens-chave profundamente ancoradas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.
O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: Como é bonito crianças correndo num gramado!
A segunda lágrima diz: Como é bonito se emocionar com toda a humanidade ao ver crianças correndo num gramado!
Somente essa segunda lágrima faz o kitsch ser o kitsch.
A fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o kitsch.
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Ninguém sabe disso melhor do que os políticos. Assim que percebem uma máquina fotográfica por perto, correm até a primeira criança que vêem para levantá-la nos braços e beijá-la na face. O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os movimentos políticos.
Numa sociedade em que coexistem diversas correntes e em que suas influências se anulam ou se limitam mutuamente, ainda é possível escapar mais ou menos à inquisição do kitsch; o indivíduo pode salvaguardar sua originalidade e o artista criar obras inesperadas. Mas nos lugares em que um só movimento político detém todo o poder, todos se encontram sem escapatória no reino do kitsch totalitário.
Se digo ‘totalitário’ é porque nesse caso tudo o que possa prejudicar o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (porque toda discordância é uma cusparada no rosto da fraternidade sorridente), todo ceticismo (porque quem começa duvidando do detalhe mais ínfimo acaba duvidando da própria vida), e ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério), mas também a mãe que abandona a família ou o homem que prefere os homens às mulheres ameaçando assim o slogan sacrossanto ‘amai-vos e multiplicai-vos’.
Desse ponto de vista, aquilo a que chamamos ‘gulag’ pode ser considerado uma fossa séptica em que o kitsch totalitário joga suas imundícies.” (p. 245-247)
“Com efeito, na mais cruel das épocas, os filmes soviéticos que inundavam os cinemas dos países comunistas eram impregnados de uma inocência incrível. O mais grave conflito concebível entre dois russos era o desentendimento amoroso: ele imagina que ela não o ama mais, e ela pensa a mesma coisa dele. No final, um cai nos braços do outro e lágrimas de felicidade escorrem pelo rosto.
A explicação convencional desses filmes, hoje em dia, é a seguinte: eles descreviam o ideal comunista, enquanto a realidade comunista era bem mais sombria.
Essa interpretação revoltava Sabina. A idéia de que o universo kitsch soviético podia se tornar realidade lhe dava calafrios. Preferia, sem hesitar, a vida no regime comunista real, com toda as suas perseguições e suas filas na porta dos açougues. No mundo comunista real, é possível viver. No mundo do ideal comunista realidade, naquele mundo de cretinos sorridentes com quem ela não poderia ter o menor diálogo, teria morrido de horror depois de uma semana.” (p. 248)
“No reino do kitsch totalitário, as respostas são dadas de antemão e excluem qualquer pergunta nova. Daí decorre que o verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que interroga. A pergunta é como a faca que rasga a cortina do cenário para que se possa ver o que está atrás. Foi assim que Sabina explicou a Tereza o significado de suas quadros: na frente, a mentira inteligível, e atrás a incompreensível verdade.
Mas os que lutam contra os regimes ditos totalitários não podem lutar com interrogações e dúvidas. Necessitam também da certeza e da verdade simplista deles, que devem ser compreensíveis para um grande número de pessoas e provocar lágrimas coletivas.
Um dia, um movimento político organizou uma exposição de quadros de Sabina na Alemanha. Sabina pegou o catálogo: na frente de sua foto haviam desenhado fios de arame farpado. No texto, sua biografia parecia a hagiografia de mártires e santos: havia sofrido, havia combatido a injustiça, havia sido forçada a abandonar seu país torturado e continuava o combate. ‘Com seus quadros, ela luta pela liberdade’, dizia a última frase.
Ela protestou, mas não a entenderam.
Ora, então não era verdade que o comunismo perseguia a arte moderna?” (p. 249)
“A vida inteira, afirmou que seu inimigo era o kitsch. Mas será que ela própria não o carrega no fundo do seu ser? Seu kitsch é a visão de um lar sossegado, doce, harmonioso, onde reinam uma mãe cheia de amor e um pai cheio de sabedoria.” (p. 250)