O kitsch em A História da Feiúra

Diferente do livro de Milan Kundera ao qual nos referimos no post passado, A História da Feiúra é um livro dedicado propriamente ao estudo das diferentes correntes artística através dos tempos. Ao invés de literatura, como A insustentável leveza do ser, nos deparamos agora com um estudo histórico, uma pesquisa plena de referências e, na medida do possível, imparcial em relação no seu 'julgamento'.
O organizador da obra é o italiano Umberto Eco, que, dentre outros tantos livros, lançou também A História da Beleza. Os dois livros, que muito se confundem com a história da arte, são verdadeiros tratados, fazem uma rica reconstrução sobre o tema, retratando a arte de modo muito elucidativo, graças às inúmeras citações e exemplificações. Um dos capítulos d'A História da Feiúra intitula-se "O feio dos outros, o Kitsch e o Camp", e, dentro dele, encontramos um pequeno capítulo que reconstrói a concepção de Kitsch (citado pelo autor em letras maiúsculas!, cheio de importância!). Tentaremos ser o mais fidedignos possível em relação às referências artísticas que compõem o livro, postanto as figuras que encontramos em suas páginas ou então substituindo-as por outras muito similares.
Em A História da Feiúra encontramos, pois, uma segunda fonte de referência para nossas discussões sobre a origem do kitsch. Nos é apresentada, desta vez, a origem filológica desta palavra alemã que tornou-se tão internacional - que, por sinal, é uma origem muito curiosa e explicativa!
E ainda uma outra curiosidade que pode renovar nosso debate: durante nossas discussões fizemos algumas comparações entre o kitsch e outras formas de expressão que com ele se confundem, como, por exemplo, o cult.. Umberto Eco vai nos fazer lembrar de um outro elemento que se separa do kitsch por um tênue limite: o trash!! Como fomos esquecer?!



O Kitsch

O feio é também um fenômeno cultural. Os membros das classes ‘altas’ sempre consideraram desagradáveis ou ridículos os gostos das classes ‘baixas’. Poderíamos dizer, é certo, que os fatores econômicos sempre pesaram nestas discriminações, no sentido em que a elegância sempre foi associada ao uso de tecidos, cores e pedras caríssimos. Mas muitas vezes o fator discriminante não era econômico, mas cultural. É uma experiência habitual destacar a vulgaridade do novo-rico que, para ostentar sua riqueza, ultrapassa os limites que a sensibilidade estética dominante estabelece para o ‘bom gosto’.
Além disso é complicado definir a sensibilidade estética dominante: não é necessariamente aquela de quem detém o poder político e econômico, mas antes a que é fixada pelos artistas, pelas pessoas cultas, por quem é considerado (pelo mundo literário, artístico e acadêmico ou pelo mercado da arte e da moda) perito em ‘coisas belas’. Mas trata-se de um conceito muito volátil. Assim, alguns leitores poderão se espantar ao encontrar neste capítulo de um livro dedicado à feiúra imagens que consideram belíssimas. Tais imagens são propostas porque a sensibilidade estética dominante, muitas vezes a posteriori, definiu-as como reprováveis, incluindo-as na categoria do kitsch.
Segundo alguns, a palavra kitsch remontaria à segunda metade do século XIX, quando os turistas americanos em Munique, querendo comprar quadros, mas com preços mais baixos, pediam um desconto (sketch). Daí viria o termo, designando quinquilharias para compradores desejosos de experiências estéticas fáceis. Contudo, no dialeto mecklenburguês já existia o verbo kitschen para “varrer a lama ou lixo das ruas”. Outra concepção do mesmo verbo seria “maquiar móveis para que pareçam antigos” e há também o verbo verkitschen para “vender barato”.
Mas para quem essas coisas seriam quinquilharias? A “alta” cultura define como kitsch os anões de jardim, as imagens devocionais, os falsos canais venezianos dos cassinos de Las Vegas, o falso grotesco do célebre Madonna Inn californiano, que pretende fornecer ao turista uma experiência “estética” excepcional. E era definida como Kitsch, sem remissão, a arte celebrativa (que se pretendia popular) das ditaduras stalinista, hitlerista ou mussoliniana, que consideravam a arte contemporânea “degenerada”.

    
                                 
          (Madonna Inn)

Contudo, quem aprecia o Kitsch considera que está usufruindo uma experiência qualitativamente alta. Basta dizer que existe uma arte para os incultos, assim como existe uma arte para os cultos, e que é preciso respeitar a diferença entre os dois “gostos” como são respeitadas as diferenças de crenças religiosas ou preferências sexuais. Mas enquanto os cultores de uma arte “culta” consideram o Kitsch kitsch, os cultores do Kitsch (salvo diante de obras cuja aspiração é justamente “chocar a burguesia”) não consideram desprezível a grande arte dos museus (os quais, aliás, expõem com freqüência obras que a sensibilidade culta considera kitsch). Muito ao contrário, consideram as obras Kitsch “semelhantes” àquelas da grande arte. Se uma das definições do Kitsch o vê como algo que visa provocar um efeito passional em vez de permitir uma contemplação desinteressada, uma outra considera Kitsch a prática artística que, para nobilizar-se e nobilizar o comprador, imita e cita a arte dos museus. Clement Greenberg afirmou que, enquanto a vanguarda (entendendo-a, em geral, como arte em sua função de descoberta e invenção) imita o ato do imitar, o Kitsch imita o efeito da imitação: ao fazer arte, a vanguarda evidencia os procedimentos que levam à obra e os elege como objetos de seu próprio discurso, enqaunto o Kitsch evidencia as reações que a obra deve provocar e elege como objetivo da própria operação as reações emocionais do fruidor.
  
(Sir Lawrence Alma-Taderma - O hábito preferido)   (William Adolphe - Nascimento de Vênus)

Uma definição indireta do Kitsch é a de Schopenhauer quando delineia a diferença entre o artístico e o interessante, este último entendido como arte que solicita os sentidos do fruidor. Schopenhauer criticava por isso a pintura holandesa setecentista, que representava frutas e mesas postas capazes de estimular o apetite mais do que convidar à contemplação. No século passado, Hermann Broch também escreveu, com desdém moralista ainda maior, contra esta estimulação programada do efeito. E certamente cai sob a rubrica do Kitsch toda a arte do final do século XIX definida como art pompier, feita de procacíssimas odaliscas, nus de divindades clássicas e hiperbólicas evocações históricas.
Mas no campo da imitação da arte “elevada”, Dwight MacDonald opôs, em um célebre ensaio, as manifestações da arte de elite, quer à cultura de massa (masscult), que à cultura pequeno-burguesa (midcult). Ele reprovava, mais que a masscult pela difusão daquilo que hoje chamaríamos de trash (ou “lixo” televisivo), a midcult pela banalização das descobertas da arte verdadeira para fins comerciais – abespinhando-se contra O velho e o mar, de Hemingway, e denunciando sua linguagem artificiosamente liricizante e sua tendência a representar personagens aparentemente “universais” (não “aquele velho”, mas “O velho”).
                                       
       (Giacomo Grosso - A nua)

Se aceitarmos a proposta de MacDonald, um bom exemplo de miscult são os retratos femininos de Boldini, um pintor que viveu a cavaleiros dos séculos XIX e XX, retratista famoso, conhecido junto à boa sociedade da época como “o pintor das senhoras”. Aqueles que encomendavam seus retratos certamente queriam uma obra de arte que fosse fonte de prestígio, mas que também celebrasse de modo inequívoco as graças da senhora.
Para tanto, Boldini construía suas pinturas segundo as melhores regras da provocação de efeito. Observando-se seus retratos femininos, é patente que o rosto e os ombros (parcialmente cobertos) obedecem a todos os cânones de um naturalismo sensitivo. Os lábios dessas mulheres são carnudos e úmidos, as carnes evocam sensações táteis; os olhares são ternos, provocantes, maliciosos ou sonhadores, sempre capazes de seduzir o espectador. As mulheres de Boldini não evocam a idéia abstrata de beleza, não usam a beleza feminina como pretexto para divagações plásticas colorísticas: representam aquela mulher e a tal ponto que o espectador é levado a desejá-la.
Mas assim que começa a pintar as vestes, quando desce do corselete à barra da saia, quando da roupa passa para o fundo, eis que Boldini abandona a técnica “gastronômica” que Schopenhauer atribuía aos pintores holandeses: os contornos renunciam à precisão, os materiais diluem-se em pinceladas luminosas, as coisas transformam-se em manchas de cor, os objetos fundem-se em explosões de luz...
A parte inferior dos quadros de Boldini remete-se a uma cultura impressionista, Boldini faz arte, cita o repertório da pintura que representava a vanguarda em sua época. Assim, seus bustos e seus rostos (a serem desejados) emergem da corola de uma flor pictórica que, ao contrário, é apenas olhável. Estas mulheres são sereias estilemáticas, nas quais à cabeça e ao busto consumíveis unem-se roupas contempláveis. A dama retratadanao poderá se sentir embaraçada por ter sido exposta carnalmente como uma cortesã: o resto de sua figura tornou-se um estímulo para degustações estéticas e, portanto, um gozo de ordem superior. O usuário midcult consome assim a sua mentira – e não importa se ou quanto consciente estava.
Se o termo Kitsch tem um sentido, não é, portanto, por designar uma arte que tende a suscitar efeitos, pois em muitos casos a arte também se propor este objetivo, nem uma arte que utiliza estilemas surgidos em outro contexto, pois isso pode acontecer sem que se caia no mau gosto: Kitsch é a obra que, para justificar a sua função de estimuladora de efeitos, se pavoneia com os despojos de outras experiências e se vende como arte sem restrições. (p 304-404)







(Giovani Boldini)

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O grupo de estudos "Arte, Sentido & História" é constituido pelo orientador Prof. Dr. em Filosofia Gerson Luís Trombetta; pelos bolsistas: PIBIC/UPF Alessandra Vieira; PIBIC/CNPq Bruna de Oliveira Bortolini; FAPERGS Taciane Sandri Anhaia; e demais integrantes: Aline Bouvié, Amanda Winter, Ana Karoline, Bárbara Araldi Tortato, Daniel Confortin, Edynei Vale, Ester Basso, Fabiana Beltrami, Fernanda Costa, Prof. Dr. em Filosofia Francisco Fianco, Guto Pasini, Iara Kirchner, Jéssica Bernardi, Leonel Castellani, Maikon Ubertti, Marceli Becker, Marciana Zambillo, Roberta del Bene e Tarso Heckler.

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